Sabesp privatizada institucionaliza falta d’água em SP, diz especialista
Com privatização, companhia deixou de ter foco no consumidor final para gerar lucro aos acionistas, diz Amauri Pollachi
Pouco mais de uma década depois da pior crise hídrica de sua história, São Paulo vê o fantasma da seca voltar a dar as caras. O Sistema Integrado Metropolitano, que abastece a capital paulista e os municípios de seu entorno, está em seu mais baixo nível desde janeiro de 2016, com um volume de cerca de 27%. O Cantareira, que ficou negativo e chegou a ter parte de seu volume morto extraído, está com pouco mais de 22% da sua capacidade, o pior índice desde fevereiro de 2016. Dessa vez, no entanto, a ameaça da falta d´água bate à porta com uma diferença fundamental: a água em São Paulo é gerida por uma empresa privatizada.
A concessão da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) à iniciativa privada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), concluída em julho do ano passado, rendeu cerca de R$ 14,7 bilhões aos cofres paulistas. Desde então, o comando da empresa, a maior do país no setor, está nas mãos da Equatorial, que se tornou a acionista de referência.
A privatização da Sabesp não é um caso único. Em 2015, 238 municípios tinham o saneamento gerido por empresas privadas; em 2025, já são 1.820, espalhados por todas as regiões do país. O movimento foi acelerado pela sanção da Lei 14.026/2020, que atualizou o Marco Legal do Saneamento Básico. Mas a onda de privatizações não vem sem críticas.
Para Amauri Pollachi, ex-presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp (APU) e servidor da companhia por duas décadas, atualmente conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e Saneamento (Ondas) “não há boas notícias sobre a privatização” até o momento e a gestão da crise hídrica por uma empresa que visa primariamente o lucro é preocupante.
“O foco é gerar o máximo possível de lucro, extrair o máximo possível de dividendo”, afirma em entrevista exclusiva à Agência Pública.
Por enquanto, a medida adotada frente à crise hídrica pela companhia, que vinha batendo recorde de retiradas dos reservatórios, foi de reduzir a pressão da rede durante a noite, o que vem gerando reclamações de falta d’água por parte da população. “O que está sendo posto é institucionalizar a falta de água”, diz Pollachi. Se a estação chuvosa, que se iniciou em outubro, ficar abaixo da média, a estratégia pode ser insuficiente. Uma das principais medidas adotadas na crise de 2014/2015, os bônus para a redução do consumo doméstico, que poderiam afetar os lucros da companhia, estão fora do radar.

Pollachi afirma que a regulação da Sabesp pelo poder público está “extremamente fragilizada” e atesta: a privatização serviu a “um viés ideológico” e vai ser revertida no futuro.“Daqui algum tempo, com essas crises hídricas, com a incapacidade de realização de investimentos, a elevação de tarifas, a falta de transparência, tudo isso vai levar a um movimento – num futuro que eu acredito que não seja muito longínquo – de reestatização, de remunicipalização”, diz.
Confira os principais trechos da entrevista abaixo:
Você é um crítico da privatização. Por que, na sua visão, a Sabesp não deveria ter sido privatizada?
A Sabesp atuava em 375 municípios e tinha universalizado o atendimento em água e esgoto para 310 desses municípios em dezembro de 2022. Mostrava um superávit recorrente nas suas contas, tinha uma capacidade de geração própria muito importante. O lucro líquido beirava R$ 3 bilhões, em média, no período entre 2012 e 2023. Ela fazia investimentos da ordem de mais de R$ 5 bilhões, em média, nesse período, e tinha um plano de investimento muito bem definido, de R$ 56 bilhões, para chegar na universalização. E, além disso, gerava dividendos para investidores, em média, de mais de R$ 800 milhões por ano. As pesquisas de opinião a respeito da qualidade da prestação de serviços da Sabesp davam um indicador da ordem de 86, 87% de aprovação.
Quando você pega esse conjunto de fatores, fica claramente demonstrado que o argumento principal adotado por uma privatização, que é falar da ineficiência, não poderia ser adotado no caso da Sabesp. [Para justificar a privatização] foi feita uma jogada de antecipar [a universalização de todas as cidades] de 2033 para 2029. Mas é um número meramente eleitoral, para buscar dividendos eleitorais, porque a Sabesp iria universalizar para praticamente 95% da população atendida até 2030.
Se falava que cinco milhões de pessoas estavam sem água, coisas desse tipo. Mas, nas 375 cidades que a Sabesp atendia, restavam 700 mil pessoas ainda sem abastecimento de água regular. Essas pessoas se localizavam especialmente nas áreas de favelas, comunidades urbanas da região metropolitana de São Paulo e da Baixada Santista. São situações muito mais dependentes de um processo de requalificação urbana, de provisão de moradia digna, do que, efetivamente, uma incapacidade da empresa para atendimento.
O Estado atuou de uma forma extremamente autoritária, com esse viés ideológico, de ganho político e de imagem perante os donos de dinheiro deste país.

Na sua opinião, a que interesses a privatização da Sabesp atendeu?
A razão principal é calcada numa crença ideológica de que a privatização é mais eficaz e mais eficiente. A Sabesp não fugiu a essa regra. Esse viés ideológico é um motor de satisfação dos interesses do capital, a gente não pode deixar de apontar isso. É a aliança entre dois interesses: o que o capital privado busca em termos de realização de lucros e o de certos gestores públicos em buscar apoio do setor financeiro para os seus interesses futuros.
No Brasil, antes da lei [14.026] de 2020 [que acelerou as concessões à iniciativa privada], eram cerca de 300 municípios sob administração privada. Hoje está em torno de 1,8 mil municípios, com a projeção de alcançar cerca de três mil com gestão privada, o que levaria a uma situação de praticamente dois terços da população brasileira sob a gestão de uma empresa privada na prestação de saneamento.
Uma das alegações que foi muito utilizada no debate foi que teríamos mais concorrência e uma melhor qualidade na prestação de serviços. Não é o que está ocorrendo. Nós estamos vendo uma concentração do poder em poucas empresas. São cinco empresas, Aegea, BRK, GS Inima, Iguá e agora a Equatorial, com o domínio da Sabesp. Essas cinco empresas concentram o mercado em suas mãos de uma forma cada vez mais profunda.
Existem várias pequenas empresas que atuam em pequenos municípios, interior a fora, mas são empresas locais e que prestam serviços ali por conta até de arranjos de interesse do poder político local. Mas são inexpressivas do ponto de vista do atendimento, municípios de pequeno porte, de 20, 30 mil habitantes.
Passado pouco mais de um ano da privatização da Sabesp, qual a sua avaliação sobre o serviço prestado pela empresa?
É perceptível que houve uma deterioração na qualidade dos serviços. Você pode identificar isso por meio das reclamações da população, Procon, mesmo na imprensa, algo que não era tão frequente antes da privatização. Por exemplo, [reclamações sobre] infiltração de esgoto na rede de abastecimento de água têm ocorrido com uma certa frequência. [Há relatos sobre] lançamento de esgotos in natura, nos rios Tietê e Pinheiros, por conta da redução de despesas e de um certo descaso com a manutenção de equipamentos. Houve uma série de denúncias de lançamento de esgoto também no reservatório Guarapiranga, reservatório Billings e muito por conta de falhas operacionais ou elevatórias que estavam inoperantes. Então a percepção é que o serviço deteriorou muito.
Quanto à universalização, há um anúncio de um aumento no volume dos investimentos, mas nós não sabemos até que ponto esses investimentos são efetivamente para a melhoria ou ampliação do atendimento. Temos notícias de que em muitas áreas tem ocorrido a implantação de ligações de água em favelas, comunidades urbanas, e tem sido muito mal executado, com muitas falhas. Não temos uma notícia positiva a respeito de privatização.
Também há programas de demissão incentivada. Eram praticamente 12 mil funcionários há dois anos e agora, nesse final de ano, vai alcançar seis mil ou pouco abaixo disso. Um processo intensivo de incentivo à saída, principalmente daqueles funcionários que têm mais experiência e, consequentemente, têm salários maiores dentro da empresa. Isso leva a uma perspectiva nada positiva para o futuro da Sabesp.
Houve aumento tarifário ao longo desse primeiro ano? É algo que você imagina que vai haver num futuro próximo?
De uma maneira bastante inteligente, o Estado colocou dentro do contrato da Sabesp uma moratória de reajuste tarifário posterior ao período eleitoral de 2026. Então espere o reajuste de 2027. Ele vai vir em uma paulada bastante significativa.
A gente está com um cenário de redução da disponibilidade dos reservatórios. De que forma a privatização interage com esse cenário de crise? A Sabesp ser uma empresa que visa primariamente o lucro e a distribuição de dividendos pode aprofundar a crise?
É preocupante, porque uma crise hídrica exige um esforço muito grande. Por exemplo, tem algo que agora está em curso, em processo de consulta pública conduzido pela Arsesp [Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo], sobre um modelo de contingência de abastecimento de água em função da crise hídrica. Esse modelo simplesmente abandona a ideia de se instituir um bônus pela redução do consumo.
Em 2014, esse sistema foi instituído e colocava assim: quem reduzir mais de 20% do seu consumo médio nos últimos 12 meses, vai ter uma redução de tarifa de 20%. A adesão da população foi da ordem de 86%. Se não tinham redução da conta, ao menos tinham redução no volume consumido. Só que alguns consumidores continuavam sendo esbanjadores, aí se instituiu o contrário, para quem consumia acima da média, colocaram uma tarifa extra. Isso também foi muito bem sucedido.
É claro que a empresa teve que fazer investimentos emergenciais e de certa forma a receita deu uma balançada. Naquele ano, o lucro não foi o mesmo, mas foi perto de R$ 1 bilhão. É algo que tem uma eficácia muito grande, mas nessa consulta agora, isso está sendo absolutamente desprezado. O que se coloca é aprofundar a redução de pressão, que na verdade é um fechamento de fornecimento de água. O que está sendo posto é institucionalizar a falta de água.
E por que para a Sabesp privatizada não interessa esse bônus de redução de consumo?
Porque vai reduzir lucro e dividendo. Não tem outra motivação. Se eu vou reduzir a retirada [de água], o bônus que os diretores têm direito, vai se reduzir.
Nesse cenário de privatização, a agência reguladora e a própria SP Águas deveriam, em tese, servir de contrapeso. Esse papel tem sido cumprido adequadamente por esses dois órgãos?
A Arsesp está extremamente fragilizada para cumprir com suas funções, inclusive porque toda a regra tarifária foi imposta na privatização. O contrato já fechou a forma de cálculo da tarifa. E pior, o contrato instituiu duas novas entidades: uma empresa verificadora independente, que vai verificar os investimentos que estão sendo realizados, e uma empresa avaliadora, que vai verificar o atingimento das metas.
A Arsesp foi esvaziada de funções, porque antes ela fazia verificação de investimentos e também fazia um acompanhamento efetivo daquilo que a empresa atendia com relação, por exemplo, a meta de redução de perdas, meta de atendimento. Agora tem empresas intermediárias que são contratadas pela Sabesp, para avaliar a própria Sabesp. A regulação ficou extremamente fragilizada.
Se chegarmos a um cenário de crise extrema, de prejuízo, o Estado tem que socorrer a Sabesp?
O Fundo de Apoio à Universalização [Fausp], criado com a lei da privatização da Sabesp, dispõe de muitos itens. Uma das possibilidades de aplicação desse fundo é em crise hídrica. Então, o Estado iria sim socorrer a empresa, coisa que não aconteceu em 2014/2015. Na época, aliás, a Sabesp fez investimentos que seriam de responsabilidade do Estado. No entanto, agora o Estado vai bancar o eventual prejuízo que a Sabesp incorrer. Isso está no próprio projeto de lei, no artigo que criou o Fausp.
O Instituto Água e Saneamento (IAS) fez um relatório sobre o aumento de retiradas pela Sabesp do Sistema Metropolitano, que abastece a Região Metropolitana, de 59 m³/s para 72 m³/s entre 2016 e 2025. A justificativa da Sabesp é de que houve um aumento populacional e por isso ela está tirando mais água dos reservatórios. Isso se sustenta na realidade? Tem alguma explicação do porquê que a Sabesp está retirando cada vez mais água?
A produção de água teve uma redução em função da crise de 2014/2015 e aí depois praticamente se estabilizou – e não é que a população da região metropolitana de São Paulo deixou de crescer. Está crescendo a taxas mais baixas, mas continua crescendo, cerca de 200 mil pessoas por ano. Mesmo com o crescimento populacional que houve e com a ampliação do índice de atendimento, o nível de produção de água ficou praticamente estabilizado em torno de 65/66 metros cúbicos por segundo (m³/s) entre 2014 e 2022 [antes da privatização].
Nada explica o crescimento desse patamar de 66 m³/s para 72 m³/s. É um crescimento de 10% em dois anos. Não tem explicação. Em toda a área atendida pela Sabesp, havia 700 mil pessoas sem abastecimento de água, incluindo em algumas cidades do interior e na Baixada Santista. Vamos supor, que essas 700 mil pessoas estivessem na região metropolitana de São Paulo, 1 m³/s atende entre 300 a 330 mil pessoas. A retirada poderia crescer 2 m³/s, de 66 para 68. Isso se passasse a atender todo mundo, o que ainda não ocorreu. A explicação possível é: liberou geral o consumo, incentivou o consumo, e houve um aumento do volume de perdas.
A baixa dos reservatórios tem a ver com esse aumento nas retiradas?
O aumento da retirada ajuda, porque se estivesse mais contido, num patamar de 68 m³/s, mais ou menos, você teria 4 m³/s poupados dentro dos reservatórios. Já seria bastante expressivo. Claro que existe uma ausência de afluência de água nos reservatórios, ou seja, não está chovendo no local onde precisa chover, que são as cabeceiras desses reservatórios.
Mas o crescimento excessivo da produção, da retirada de água, é algo que, para mim, é [sinal de] uma gestão temerária. Se apontava, já no ano passado, que os reservatórios não estavam tão confortáveis assim. Esse é o insumo principal da empresa. Mas a lógica de lucro e dividendos, máxima geração de receita, máxima redução de despesas, máxima geração de lucro, não permite olhar com parcimônia para esse insumo básico.
A Sabesp informa que bateu a meta de novas ligações. Está claro que novas ligações são essas? Você falou que uma das explicações possíveis para esse aumento da retirada seria um aumento das perdas. Não deveria acontecer o contrário, já que a Sabesp colocou tanta gente na rede?
O aumento de perdas é porque você tem uma deterioração na prestação dos serviços. Claro que agora, com a redução de pressão, eles estão anunciando que estão reduzindo perdas. Na verdade, isso é algo fictício. Não está se trabalhando efetivamente para eliminar as perdas. Está se fazendo uma manobra que é temporária, que momentaneamente dá um refresco. Provavelmente, as perdas cresceram antes de ser aplicada essa tal da “redução de pressão”.
Há transparência sobre as perdas e sobre essas novas ligações?
Não dá para saber, não há transparência.
Algo que foi bastante comentado na época em que se começou a discussão sobre privatização do serviço de saneamento, foram exemplos que vêm de fora, de serviços que foram privatizados e tiveram uma piora da qualidade, passando posteriormente por processos de reestatização. Por que isso aconteceu? Você enxerga uma possibilidade disso se repetir aqui no Brasil?
Isso que está acontecendo no exterior aconteceu aqui no Brasil também. No município de Itu, em 2014 e 2015, naquela crise hídrica, havia um caos total. A Sabesp, que não operava os serviços de saneamento de Itu, cedia caminhões-pipa para abastecer emergencialmente algumas áreas prioritárias no município. Itu estava sob a gestão de uma empresa privada e essa concessão foi cassada por conta da total ineficiência da empresa na gestão da crise hídrica. O Brasil já tem esse exemplo.
No exterior, esse movimento de remunicipalização ou reestatização ocorre com uma intensificação mais aguda a partir de 2005, e tem acontecido de uma maneira contínua, em um número muito maior do que o de privatização mundo afora. Centenas de cidades relevantes fizeram a reversão para administração pública.
As razões principais são: tarifas elevadas; remuneração elevada dos gestores privados, muito mais preocupados em obter os bônus do que em prestar um serviço de qualidade; não cumprimento de metas, dos investimentos que foram contratados; falta de transparência; má qualidade na prestação de serviços. Aqui no Brasil, talvez a gente tenha que passar pelo remédio amargo dessa privatização em boa parte do país.
Ao invés de fazer que o saneamento seja uma política pública essencial, que seja prestado de forma eficiente, com qualidade para toda a população, independente do seu local de moradia, da sua condição econômica, hoje ele é tratado como um ativo a ser financeirizado. O foco não é levar saúde para a população por meio de um saneamento digno. O foco é gerar o máximo possível de lucro, extrair o máximo possível de dividendo.
Daqui algum tempo, com essas crises hídricas, com a incapacidade de realização de investimentos, a elevação de tarifas, a falta de transparência, tudo isso vai levar a um movimento – num futuro que eu acredito que não seja muito longínquo – de reestatização, de remunicipalização.
Não vai ser tranquilo, porque todos esses contratos possuem cláusulas que amarram muito bem os direitos do concessionário com relação a ressarcimento em caso de encerramento do contrato. É algo que exigirá um esforço muito grande de governantes e da própria população.



