Lei Rouanet: obra sobre armas aprovada nos anos Bolsonaro é lançada com dinheiro da Taurus
Editora lança livro após captar ao menos R$ 336 mil com fábrica brasileira de armas que terá isenção fiscal
O ano era 2022. O presidente era Jair Bolsonaro, hoje condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por golpe de Estado e preso por violar a tornozeleira eletrônica que o monitorava na prisão domiciliar. No governo do ex-capitão, o secretário de Incentivo e Fomento à Cultura da época André Porciuncula disparou: “Pela primeira vez vamos colocar dinheiro da Rouanet em eventos de arma de fogo, vai ser super bacana isso”, como a Agência Pública mostrou com exclusividade naquele momento. Pois agora, em 2025, a promessa tornou-se realidade.
Neste mês de novembro, foi lançado um livro sobre a história das armas no Brasil com recursos captados via Lei Rouanet. A obra “Armas – A democracia entre a propaganda e a realidade” captou mais de R$ 420 mil através da Rouanet. O lançamento do livro aconteceu no dia 16 de novembro, no Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, com o jornalista que assina o livro, Ricardo Viveiros.
Todo o dinheiro para bancar o livro via Rouanet veio da Taurus, a maior fábrica de armas do Brasil e a maior fabricante de revólveres do mundo. Segundo o painel do Ministério da Cultura que a reportagem consultou, a Taurus patrocinou R$ 336 mil e doou outros R$ 85 mil para o livro.
A Rouanet funciona como um incentivo fiscal: isto é, empresas colocam dinheiro em projetos aprovados pela Lei e, a partir desse “investimento”, podem abater impostos. Em outras palavras, a Taurus pode abater impostos a partir do dinheiro usado para patrocinar o livro sobre armas.
Por que isso importa?
- A Taurus já vendeu mais de 31 milhões de armas de fogo e chegou a produzir em um ano (2021), 2,25 milhões de unidades.
- A Lei Rouanet foi criada para estimular e fomentar a produção, preservação e difusão cultural por meio do direcionamento de até 4% do Imposto de Renda devido tanto de pessoas físicas como de pessoas jurídicas.
“Armas e democracia”: o que conta o livro?
O livro, com 130 páginas, faz um resgate histórico sobre o Brasil desde o início da colonização, para mostrar situações que envolveram uso de armas. Nos últimos capítulos, a obra recorda a história do referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, realizado em 2005, durante o primeiro governo Lula (PT), no qual a população foi consultada sobre a proibição da venda de armas de fogo e munição. Na época, a maioria respondeu ao referendo contra a proibição.

Nos capítulos, o livro narra a articulação do “grande time” que não queria a proibição do armamento, e descreve ações do grupo que fazia campanha pela proibição, como “ataques afrontosos da outra frente”, citando ações da rede Globo com artistas e o lançamento da novela Bang Bang. O tom da campanha que pedia a proibição das armas também é descrito como “clima de belicosidade”. Já a outra campanha, a pró-armas, é descrita como uma “ideia ousada”.
A obra também menciona Bolsonaro, na época um deputado federal, que criticava na Comissão de Segurança da Câmara a proibição às armas: “Entreguem suas armas! Os vagabundos agradecem!”, dizia a faixa levada pelo político, hoje preso.
Livro chegou a ser suspenso pelo Ministério da Cultura
A execução do livro sobre armas no Brasil chegou a ser suspensa pelo Ministério da Cultura em 2023. Na época, após uma recomendação da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), o livro foi suspenso por falta de comprovação de despesas ou dos resultados alcançados, e, também, por conflito de interesse e vantagem indevida do patrocinador, a Taurus.
Além disso, o ministério apontou outro problema: o projeto tinha a contrapartida de fazer cinco palestras gratuitas presenciais com professores e estudantes de escolas públicas do Brasil. Na época, o Ministério avaliou que a proposta era imprópria, por ser um “estímulo ao armamento direcionado a jovens estudantes e aos professores da rede pública e a iniciativa de fazer divulgação em ambientes educacionais, (…) especialmente em um cenário crescente e alarmante de violência nas escolas brasileiras”.
Procurado pela Pública, o Ministério da Cultura informou que a suspensão do livro foi revogada em 2024, e que o projeto está agora em fase de execução até 31 de dezembro de 2025, que é também o prazo para envio de comprovação dos valores arrecadados. O governo também afirmou que o conflito de interesse apontado anteriormente foi avaliado em outubro de 2024, quando a comissão aprovou, por unanimidade, a continuidade do projeto.
“Rouanet das armas”: a estratégia de guerra cultural
Em 2022, quando Porciuncula anunciou dinheiro da Rouanet para armas, a proposta era ainda mais ousada. Segundo ele mesmo declarou, o governo Bolsonaro teria R$ 1,2 bilhão para dois “megaeventos” do Bicentenário da Independência, em setembro de 2022, e o dinheiro poderia ser usado por criadores de conteúdos pró-armas.
“Estamos lançando agora, de linha audiovisual, que vocês podem usar para fazer documentários, filmes, webséries, podcasts, para quê? Para trazer a pauta do armamento dentro de um discurso de imaginário. Trazer filmes sobre o armamento, da importância do armamento para a civilização, a importância do armamento para garantir a liberdade humana”, afirmou durante a Convenção Nacional Pró-armas. Ele estava ao lado do presidente da Associação Nacional Pró-armas e hoje deputado federal pelo Mato Grosso do Sul, Marcos Pollon (PL).
A Rouanet é uma ferramenta rotineiramente criticada por Bolsonaro e seus apoiadores. Ele já a chamou de desgraça. Durante a gestão do secretário de cultura do governo Bolsonaro, Mário Frias, a lei havia reduzido o teto de projetos apoiados de R$ 1 milhão para R$ 500 mil, o de artistas para R$ 3 mil por projeto aprovado e o aluguel de teatro para R$ 10 mil.
Apesar das críticas, a estratégia de Frias e Porciuncula, segundo eles mesmos declararam, era usar a Rouanet para a guerra cultural: agir dentro do imaginário coletivo para que a população mude a percepção e apoie a pauta do armamento. Para isso, o secretário afirmou ter colocado a equipe e os recursos da Secretaria da Cultura à disposição de armamentistas.
“Então é muito importante, que a gente faça, que a gente trabalhe o audiovisual. Se a gente acredita em armas, a gente precisa criar os heróis. A gente precisa entender que as narrativas, principalmente para população mais jovem, não são a partir de estatística, coronel, não são a partir de números que a gente vai convencer essa garotada de que nós queremos um Brasil melhor, e sim a partir da cultura”, disse Frias.



