Privatização de cemitérios em São Paulo expõe racismo religioso a culto de Umbanda

Concessionária tenta impedir evento com recursos na Justiça e perde; racismo religioso é motivação, diz pai de santo

Novembro 7, 2025 - 11:47
Privatização de cemitérios em São Paulo expõe racismo religioso a culto de Umbanda

Meia-noite. “Na encruzilhada, dando a sua gargalhada, Tranca-Ruas apareceu”. Como nesse “ponto cantado” – música tradicional nas giras de Umbanda -, exús e pombagiras caminham pelo cemitério embalados pelo som dos atabaques. 

Centenas de velas iluminam o caminho de jovens, adultos, idosos e crianças que cantam, dançam e realizam o encontro sagrado com sua ancestralidade. É a festa na Kalunga, cerimônia religiosa de Umbanda que reúne anualmente, na virada do dia 1° de novembro para o dia 2, com dezenas de terreiros representados e cerca de 500 umbandistas, segundo estimativa do local, no cemitério São Pedro, na Vila Alpina, zona leste da capital paulista.

Mas desde 2024, em São Paulo, a festa na Kalunga enfrenta uma barreira bastante mundana: a privatização dos cemitérios municipais, realizada na gestão de Ricardo Nunes (MDB). A advogada pelos direitos das mulheres e no combate ao racismo religioso, Renata Pallottini, precisou, como diretora jurídica do coletivo Terreiro Resiste e representando o Terreiro Aruanda, entrar com um mandado de segurança no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) para assegurar que os encontros ocorressem.   

Isso porque a Velar SP, empresa concessionária do cemitério São Pedro, impetrou duas vezes recursos com o objetivo de determinar regras que, na prática, barravam a execução do rito. Entre elas, a permissão para presença de no máximo 20 pessoas, encerramento das atividades até 22h e proibição do uso de velas acesas durante a cerimônia. Em todas as tentativas, a Justiça de São Paulo deu ganho de causa ao Terreiro Aruanda, por entender que os praticantes da Umbanda têm o direito de realizar a cerimônia conforme suas tradições, sem restrição, conforme garante a Constituição Federal. 

“O mandado de segurança foi necessário porque o Terreiro Aruanda, que realiza há anos o culto à ancestralidade no cemitério São Pedro, foi impedido pela concessionária que administra o espaço de realizar o ritual de 2024. […] Também para afirmar que o cemitério é um território sagrado para as comunidades de matriz africana. Impedir o culto ali é ferir não só a liberdade religiosa, mas o direito à cidade e à ancestralidade, dimensões essenciais dessas tradições”, afirma Pallottini, que também é pós-graduada em processo penal pela Universidade Mackenzie.

A advogada ressalta que a decisão do TJSP em segunda instância garante, em definitivo, a realização do culto, todos os anos, sem qualquer restrição. “O Terreiro Aruanda não precisa mais acionar o Judiciário anualmente. O direito está reconhecido, e os embargos de declaração interpostos pela Velar foram rejeitados. O acórdão transitou em julgado reafirmando que a liberdade de culto não depende de renovação: ela é contínua e inalienável”, explica.

A partir desse resultado, o objetivo é “consolidar e vigiar a vitória”, diz Pallottini. “Mantemos diálogo com outros terreiros e com órgãos públicos de promoção da igualdade racial, para que o precedente judicial se transforme em parâmetro de política pública, e não em exceção isolada”.

Por que isso importa?

  • A privatização dos cemitérios em São Paulo tem estipulado regras que dificultam as práticas da Umbanda. Na religião, os cemitérios são um território sagrado.
  • No Brasil, os adeptos da umbanda e do candomblé chegam a quase 2 milhões, segundo dados do Censo 2022 do IBGE, número que vem crescendo e ainda pode estar subnotificado devido ao preconceito contra religiões de matriz africana.

O pai de santo do Terreiro Aruanda David Dias, mestre em ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e doutorando em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), reafirma a importância de compreender o êxito na Justiça como vitória coletiva. “A luta pelo direito de culto não é uma causa isolada do Terreiro Aruanda, mas parte de uma disputa ampla pela liberdade e dignidade dos povos de terreiros”, explica. 

“Quando uma gira é impedida, o que se interrompe não é apenas um rito, mas a continuidade de uma história que sustenta o Brasil desde a diáspora. Defender o nosso direito de estar na Kalunga é defender o direito de existir como povo negro, como cultura viva, como memória coletiva”, declara o pai de santo. 

“Na Umbanda, o cemitério é chamado de Kalunga Pequena, um território sagrado que representa o elo entre os vivos e os ancestrais. É ali que se elaboraram novos sentidos para a vida e para a continuidade dela; um reencontro com a continuidade e não com o fim”, afirma Dias.

Problema surge com empresas privadas na gestão dos cemitérios

Desde a concessão da gestão dos cemitérios públicos municipais a empresas privadas em março de 2023, a realização das cerimônias de Umbanda começou a ficar mais difícil. Segundo Pallottini, antes da empresa Velar SP assumir a administração do cemitério São Pedro, os terreiros não tinham dificuldade de promover seus rituais. 

“[Até a concessão], o Terreiro Aruanda realizou o culto à ancestralidade de forma legítima, pacífica e respeitosa, sem necessidade de autorização formal. Não havia conflito algum, e a própria prefeitura sempre reconheceu esse direito como parte da pluralidade religiosa da cidade”, lembra Pallotini.  

“O problema começa com a concessão da gestão dos cemitérios à Velar, quando uma empresa privada passa a agir como se fosse proprietária de um bem público, impondo restrições arbitrárias […] que ferem não apenas a Constituição, mas os princípios do próprio direito administrativo, como legalidade, razoabilidade e impessoalidade”, conta.

Para o Pai David Dias, “a concessão abriu um precedente perigoso: a transferência da gestão de um bem público e culturalmente sensível para a lógica empresarial. Os cemitérios continuam sendo espaços públicos, mas agora administrados por empresas que operam sob o critério da rentabilidade, e não da função social”, alerta.

Participante da festa da Kalunga este ano, Silvana Cotrim, mãe de santo do Quilombo Vó Cotinha e Pai Gusmão, um terreiro de Umbanda Bantu, em Atibaia (SP), também afirma que a concessão às empresas privadas piorou a relação entre os cemitérios e os praticantes da religião. “As empresas acham que gerir um espaço as torna donas absolutas […] E ditam regras que, muitas vezes, não levam em conta as especificidades da população. As regras rígidas, que trazem lucro ou minimizam despesas, importam mais que os direitos da população? Para eles, sim”, avalia.

Em nota à Agência Pública, a gestora Velar SP afirma que “todas as solicitações [de realização de cultos] são devidamente acolhidas e deferidas, com os cultos acontecendo nos cemitérios administrados pela Concessionária com todo acolhimento, segurança e respeito”. Segue a íntegra do posicionamento.

Violências institucionais vão de abordagens a covas sem sinalização 

O direito ao espaço público e à liberdade religiosa presente na Constituição e corroborado por seguidas decisões judiciais não foram suficientes para evitar a violência institucional. Na edição da festa da Kalunga este ano, no último sábado, o pai de santo David Dias foi interpelado por um segurança do cemitério São Pedro. O argumento era de que ele não poderia entrar “sem autorização prévia”. Mais uma vez, foi necessário ir à administração do local e apresentar a documentação que comprova o direito de acesso, conquistado na Justiça. 

“Esses episódios mostram que as decisões judiciais asseguram o direito, mas não isentam do constrangimento. Como ensina Lélia Gonzalez, o racismo no Brasil é ‘à brasileira’: não se declara, se administra; não proíbe, se organiza para constranger. É o racismo travestido de procedimento técnico, que continua testando os limites da fé negra nos espaços públicos”, argumenta Pallottini.

O pai de santo David Dias também salienta que para garantir a segurança dos povos de terreiro em espaços públicos “é essencial que agentes públicos e privados recebam formação antirracista e inter religiosa, para aprender a lidar com a diversidade espiritual sem reproduzir os preconceitos e violências que historicamente atingem as religiões de matriz africana”. 

Em nota, a Velar SP afirmou que “durante a noite de 1° de novembro e madrugada de 2 de novembro de 2025, o Cemitério São Pedro recebeu cerca de 500 pessoas devotas de entidades religiosas de matriz africana, que realizaram seus ritos de fé livremente. Ninguém foi impedido de acessar o cemitério”. 

A segurança dos participantes da festa da Kalunga também não foi priorizada pela concessionária do cemitério. “Falta de sinalização adequada, covas abertas sem qualquer indicação de perigo, entulhos e materiais de construção espalhados pelos caminhos. São situações que colocam em risco quem transita pelo espaço e que ocorrem não apenas durante a festa na Kalunga, mas ao longo de todo o feriado de Finados”, relata o Pai David Dias. 

“A festa na Kalunga é conduzida por pessoas do próprio terreiro e acolhe idosas, crianças e pessoas com deficiência, o que exige cuidado redobrado com o ambiente e com o acolhimento coletivo”, acrescenta. 

Já a concessionária afirma que “a zeladoria estava em ordem para o dia de Finados, seja na jardinagem, limpeza das instalações, segurança, vias de acesso e outros quesitos, apesar das chuvas”.

Porém, sobre “jazigo em ruínas”, a Velar SP admite que “a manutenção e a infraestrutura no subsolo do jazigo são de responsabilidade dos cessionários [donos das covas]. Constatado o desabamento, a Velar entra em contato com os cessionários e, uma vez conseguido o contato, oferece um jazigo desocupado, sempre que há disponibilidade […] Enquanto isso não é possível, as áreas ficam cercadas e a Velar não pode efetuar trabalhos de recuperação sem autorização da família cessionária”.

O líder religioso lembra que para além de questões estruturais existe uma “preocupação mais profunda: preservar o sentido do encontro”. “A Festa na Kalunga não é um evento, é um rito de reconexão com os nossos ancestrais e com o próprio sentido de ser umbandista. Lutamos para que o cemitério continue sendo um território de espiritualidade, e não de exclusão ou medo. É um momento de beleza, celebração e resistência”, ressalta.    

Questionada sobre se sentir segura em espaços públicos, a mãe de santo Silvana Cotrim entende que é difícil. ‘Eu me sinto, entre os meus, mais protegida, porque sei que se algo acontecer, a gente está junto. Mas, dizer que me sinto completamente segura, achando que não vai acontecer alguma coisa, não. Eu sei que pode acontecer. Espero e confio que os meus ancestrais, que vão estar ali comigo, nos guardem e nos protejam disso. Mas como pessoa, segura, a gente não está”, avalia.

Por outro lado, Mãe Silvana salienta a importância de não abrir mão dessa presença. “A estrutura que está no poder é uma estrutura branca, uma estrutura racista. E infelizmente, eu acho que a gente ainda vai ter muita luta pela frente. Mas acho extremamente importante que as lideranças de filosofias africanas, de filosofias pretas, tomem esses espaços que são espaços de ritos nossos”.

A batalha jurídica pelo direito ao culto

A necessidade de buscar o Poder Judiciário para garantir o direito de acesso ao cemitério São Pedro surgiu em 2024 quando a concessionária Velar SP tentou inviabilizar o rito impondo regras impeditivas. Foi necessária uma liminar da Justiça para que a gestora aceitasse o evento respeitando as particularidades de culto. 

Naquele ano, “a Velar-SP criou um formulário de ‘autorização para trabalhos espirituais’ que, entre outras exigências, proibia expressamente rituais que fizessem uso de animais — uma regra que, embora apresentada como neutra e administrativa, tem destinatário certo: as religiões de matriz africana”, relata a advogada Renata Pallottini.

“Essas regras ‘técnicas’ e ‘organizacionais’ são o rosto moderno da discriminação: parecem neutras, mas produzem exclusão. São expressões daquilo que eu chamo de burocracia do racismo: formulários, restrições e protocolos que revestem o preconceito de legalidade”, complementa.

“O caso da administradora Velar ilustra bem isso: ao impor formulários, questionários de investigação sobre ritos, limitar o número de participantes, proibir elementos ritualísticos e até condicionar o uso do espaço ao tempo e à chuva, ela deixa clara a tentativa de transformar o direito ao culto em um privilégio autorizado. Essa burocratização seletiva é uma forma moderna de exclusão religiosa”, corrobora Pai David Dias. 

Mesmo com a liminar, Pallottini reforça que a concessionária usou práticas de coerção na edição de 2024. Por volta de meia-noite, a administração entrou no meio do ritual com um caminhão, argumentando que era necessário instalar uma caçamba de lixo para o dia de Finados. “A imagem da caçamba atravessando o ritual é o retrato do racismo institucional”, salienta a advogada.

Em 2025, a Justiça Paulista transformou a liminar em sentença e concedeu em definitivo ordem de segurança para garantir a realização do culto à ancestralidade, sem imposição de regras. Porém, a gestora do cemitério entrou com recurso na segunda instância do Tribunal. Perdeu, e o entendimento da sentença foi confirmado. Não satisfeita, a concessionária entrou com um novo recurso, ainda na segunda instância do TJSP, e perdeu mais uma vez.  

Segundo apresentado na decisão, a empresa afirmou que “reforçando seu profundo respeito a todas as religiões e seus cultos, porém, esclarecendo que as regras estabelecidas para atividades religiosas objetivam a segurança, obediência às normas de vigilância sanitária, a limpeza dos locais e o bem-estar e o respeito coletivo e individual, de todos, sem exceções ou privilégios especiais, não havendo ofensa alguma às decisões do STF ou à Constituição Federal no estabelecimento de regras de uso e conduta nos cemitérios sob sua administração”.

Os argumentos da Velar SP foram refutados pelo desembargador José Orestes de Souza Nery, que assina o acórdão dos embargos como relator. No documento, ele enfatiza ser “indiscutível que deve ser plenamente respeitada a liberdade religiosa e de culto da parte impetrante, inclusive em relação às peculiaridades de suas liturgias, sendo vedada qualquer discriminação por quem quer que seja, nos exatos termos em que decidido pelo Supremo Tribunal Federal e recentes alterações legislativas que tipificaram o chamado ‘racismo religioso’”. 

O magistrado ainda afirma que “conforme bem sentenciado, entendo imperiosa a concessão da ordem de segurança para assegurar à parte impetrante a realização de seus cultos e liturgias, sem restrições quanto ao dia, hora ou número de participantes, em locais públicos”.

Questionada pela Pública, a gestora do cemitério São Pedro afirmou que “a concessionária cumpriu a decisão judicial e não apresentará novos recursos”. Em outra mensagem, afirmou que “cotidianamente recebemos essas solicitações e todos são autorizados [sic], até mesmo o responsável de um terreiro que não tenha feito solicitação anterior se apresenta na administração, registra o evento e realiza normalmente sua atividade religiosa”.

Enfrentar o racismo religioso: um ato político de resistência

Na avaliação do Pai David Dias, o acórdão cita a causa estrutural dos desafios impostos às comunidades de Umbanda, e outras religiões de matrizes africanas, seja em São Paulo ou no Brasil.

“A situação vivida pelos terreiros de Umbanda nada mais é do que um reflexo direto do racismo religioso que afeta as culturas de matrizes africanas. Existe uma tendência histórica de se reconhecer como legítimas apenas manifestações cristãs”, argumenta Dias. 

Mãe Silvana Cotrim concorda e diz: “toda vez que vai ter algum movimento de uma filosofia de matriz africana, há um problema. Não é porque é uma religião ou uma filosofia diferente da institucionalizada no Brasil, mas porque é uma filosofia preta e isso remete ao racismo. Não tem outra explicação a não ser que é uma atitude racista. Qualquer manifestação que seja ligada à religião ou à filosofia de matriz africana, seja o candomblé, a umbanda, o tambor de mina, qualquer manifestação, a gente encontra barreira”, diz. 

O Pai David Dias cita o escritor Abdias Nascimento quando descreve o “racismo difuso” enfrentado pelas religiões de matrizes africanas. Um racismo “disfarçado, institucional, que opera por meio da burocracia, da omissão e da negação”. 

“Nenhuma paróquia precisou de um mandado de segurança para rezar uma missa de Finados. Nenhuma igreja evangélica foi impedida de realizar uma vigília ou acender velas em memória dos seus. Nenhum missionário ou pastor teve seu acesso questionado ou impedido ao cemitério”, argumenta. 

Já a advogada Renata Pallottini afirma que o racismo estrutural foi potencializado pela inclusão da iniciativa privada na gestão do espaço público. “A privatização não só dificultou, mas fragilizou o próprio conceito de liberdade religiosa em território público, ao transformar um direito coletivo em um ato condicionado à vontade de uma concessionária. E esse é um precedente perigoso, porque onde a iniciativa privada entra sem controle público, a democracia e a diversidade saem pela porta dos fundos”.

“O poder público costuma enxergar os terreiros como problema, não como patrimônio. Quando o Estado reconhece o terreiro como agente cultural, social e de cuidado, ele amplia a democracia. Precisamos de políticas que nos incluam nos editais, nos conselhos de cultura, nas pautas de educação e de saúde”, diz Pai David Dias.

Ele também aponta a importância de “fortalecer e instrumentalizar as lideranças afrorreligiosas como sujeitos políticos, capazes de ocupar conselhos, dialogar com o Estado e reivindicar seus direitos sem precisar depender de ‘favores’ políticos”.  

Sobre o reconhecimento do direito ao espaço público pela Justiça de São Paulo, Renata Pallottini afirma que “a relação entre o Direito e o povo de terreiro não pode ser apenas de defesa, precisa ser também de transformação mútua”. 

“Os terreiros têm muito a ensinar sobre como reparar, como reconciliar, como cuidar do comum”, pondera. “Se eu puder colocar uma pedrinha miúda em Aruanda, é essa — convencer o poder público de que preservar o terreiro é preservar a memória, a organização e a dignidade do povo negro no Brasil”, conclui Pallottini .