“O próximo passo da evolução humana” tem de começar agora
Se é inevitável ultrapassar o aquecimento de 1,5°C, é bem-vindo o apelo da presidência da COP30 por avanços em adaptação
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Se esta semana já começou difícil para o combate à crise climática – com a notícia de que o Brasil deu o passo inicial para abrir uma nova frente de exploração de petróleo na foz do Amazonas –, ela ganhou um contorno extra de preocupação com uma fala do secretário-geral da ONU, António Guterres, nesta quarta-feira (22).
Guterres fez o que talvez seja a primeira admissão pública de uma alta autoridade, baseada em dados científicos, de que a principal meta das negociações climáticas já foi perdida.
“Uma coisa já está clara: não conseguiremos conter o aquecimento global abaixo de 1,5 °C nos próximos anos. A ultrapassagem agora é inevitável, o que significa que teremos um período, maior ou menor, com maior ou menor intensidade, acima de 1,5 °C nos próximos anos”, disse na abertura do congresso da Organização Meteorológica Mundial (OMM).
Manter o aquecimento do planeta a 1,5 °C em comparação com os níveis pré-industriais é o principal objetivo do Acordo de Paris, assinado em 2015, e foi assim definido porque há um alerta muito claro da ciência de que cada décimo de grau a mais vai trazer mais consequências danosas para a humanidade e a todas as outras formas de vida do planeta.
Conter o calor em 1,5 °C seria, portanto, o “mais seguro”. Em termos, claro, porque isso já é capaz de fazer um bocado de estragos.
No ano passado, a temperatura média da Terra já havia ultrapassado essa marca e foi um ano em que testemunhamos ondas de calor em série e eventos extremos espalhados por todo o planeta, causando mortes, perdas econômicas, doenças, fome. Mas ainda não dava para cravar que o limite havia sido alcançado, porque esse aquecimento tem de ser consistente ao longo de alguns anos, e muitos cientistas vinham sendo cautelosos.
Se já há uma confiança de que vamos viver nesse patamar pelos próximos anos – torcendo para que sejam poucos, na esperança de que em algum momento em breve o mundo há de conseguir derrubar drasticamente suas emissões de gases de efeito estufa –, a ação contra a crise climática precisa ser acelerada em muitas frentes. E uma delas pode ganhar um grande impulso com a COP30, a conferência do clima da ONU, que começa em Belém no dia 10 de novembro.
Fortuitamente, foi sobre isso que o embaixador André Corrêa do Lago, presidente da COP30, tratou na sua 8ª carta direcionada à comunidade internacional, lançada nesta quinta-feira (23): a necessidade de avançar na adaptação de nossas cidades, infraestrutura, saúde, agricultura para o novo cenário climático. Corrêa do Lago faz um convite para que todos olhem para a adaptação “como o próximo passo da evolução humana”.
No que talvez seja sua carta mais inspirada – e inspiradora – até o momento, a presidência da COP30 afirma que “à medida que a era dos alertas dá lugar à era das consequências, a humanidade se depara com uma verdade profunda: a adaptação climática deixou de ser uma escolha que sucede à mitigação; ela é a primeira parte de nossa sobrevivência”.
Ele faz um apelo especial para que os países coloquem no foco das suas atenções aqueles que já estão mais expostos e na linha de frente dos desastres ambientais. Dados recentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, destacados na carta, apontam que mais de 1 bilhão de pessoas vivem em um estado de “pobreza multidimensional aguda” e, entre elas, quase 900 milhões vivem em regiões que já enfrentam ao menos um grande risco climático.
“Sem adaptação, a mudança do clima se torna um multiplicador da pobreza, destruindo meios de subsistência, deslocando trabalhadores e aprofundando a fome”, escreve. E lembra que “à medida que os impactos se intensificam, a inação não representa uma falha técnica, mas sim uma escolha política sobre quem vive e quem morre”.
O grande gargalo – como vale para todos os temas da ação climática – é o financiamento para a adaptação. A falta de recursos ainda é latente e os países menos desenvolvidos vêm fazendo um apelo para que os recursos tripliquem nos próximos anos – mensagem endossada pela presidência da COP30. Corrêa do Lago faz um apelo na carta para que os países e instituições aumentem “a quantidade e a qualidade do financiamento para adaptação, garantindo que ele chegue aos mais vulneráveis”.
O embaixador frisou, tanto na carta quanto também em coletiva de imprensa, que financiamento não é caridade. Para os países desenvolvidos, diz, pode ser um “investimento inteligente, que gera estabilidade global e benefícios domésticos”. Já para os países em desenvolvimento, torná-los mais resilientes à mudança do clima, além de salvar vidas, também é que os tornará atraentes, visto que mais seguros, para atrair investimentos e evitar custos muito maiores no futuro.
Na coletiva, tanto Corrêa do Lago quanto a diretora-executiva da COP, Ana Toni, reforçaram que só com adaptação muitos países vão conseguir também reduzir suas emissões de gases de efeito estufa, uma vez que hoje eles gastam com atendimento emergencial à desastres climáticos o que poderiam estar investindo em mitigação.
“Financiar a adaptação não só cria milhares de empregos, mas também torna essas economias mais resilientes também para liderar a mitigação. Não é uma coisa ou outra, eles são complementares”, disse Ana Toni. O déficit de financiamento para adaptação hoje, no entanto, já está em alguma coisa entre US$ 320 bilhões e US$ 400 bilhões, lembra a economista.
“Na nossa COP, o que a gente está tentando trazer é esse debate: precisamos do quê e de quais instrumentos? Porque não é só um problema de quantidade, é um problema de acesso. Não adianta ter muito recurso para adaptação se é recurso, por exemplo, do setor privado, com dívidas muito altas, quando esses países não têm capacidade de se endividar ainda mais”, diz. Segundo Ana Toni, a presidência tem trabalhado para que o financiamento para adaptação seja concessional ou público.
Se a COP em Belém conseguir abrir os caminhos para que essa lacuna seja fechada, que o investimento flua, que os países que mais precisam de fato consigam acessar os recursos e que haja diretrizes claras sobre como a adaptação pode ser conduzida localmente, com a definição dos Objetivos Globais de Adaptação, já terá ajudado, e muito.



