Escola sem partido 2.0? Cavalo de Tróia em projeto propõe filmar professores no DF
Projeto de lei da extrema direita que aposta em vigilância 24h em escolas foi aprovado na Câmara do DF
A professora Patrícia Ramiro, com três décadas de experiência na rede pública do Distrito Federal, em Brasília, narrou à Agência Pública um episódio de espionagem. “Esse ano, um aluno de oito anos foi enviado pelo pai à escola com um gravador escondido no casaco.” O motivo era trivial: o menino havia mordido um colega e recebido uma repreensão pedagógica, uma medida comum no sistema de ensino. A professora que fez a repreensão agia dentro do esperado. O pai, no entanto, não via assim.
“Depois que o pai revelou o gravador, ele procurou a direção e ameaçou processar a professora, tentando transformar uma medida educativa adequada em abuso de autoridade”, relembra Patrícia Ramiro. A situação, que ela classifica como “absurda”, agora pode se institucionalizar e virar regra com o Projeto de Lei 944/2024, que foi aprovado hoje na Câmara Legislativa do Distrito Federal por 15 votos favoráveis e seis contrários.
A Lei pretende instalar um “Sistema de Monitoramento e Registro de Atividades” (SIMRA) em todas as escolas públicas do DF. A proposta, do deputado Thiago Manzoni (PL), prevê câmeras com captação de áudio e vídeo em cada sala de aula. O argumento oficial é a segurança de alunos e professores. Para muitos educadores, porém, a medida é um “cavalo de troia legislativo”, uma reedição da agenda “Escola sem Partido” sob o disfarce da proteção.
“Enquanto se investe em câmeras, nossas escolas seguem sem ar-condicionado, sem internet funcionando direito e até sem água potável”, critica a professora Ramiro, contrapondo a prioridade da vigilância à precariedade da infraestrutura. A preocupação dela encontra eco no campo jurídico. O advogado criminalista Amaury Andrade vê uma afronta direta à Constituição. “O monitoramento contínuo dentro das salas de aula afronta o artigo 206 da Constituição e contraria decisões do Supremo Tribunal Federal”, afirma. Ele se refere ao princípio da liberdade de cátedra, a garantia de que professores podem ensinar e expressar ideias sem censura.
O deputado Fábio Félix (PSOL) é mais direto. “O que vemos aqui não é apenas uma preocupação com proteção, é uma tentativa de controlar e censurar professores”, disse ele à Pública, antes do PL ser aprovado. “É uma cortina de fumaça para restringir o trabalho docente e intimidar a categoria.” Para Félix, a segurança, embora essencial, não pode justificar a invasão do espaço pedagógico.
O debate não é novo. O STF já declarou inconstitucionais leis municipais e estaduais inspiradas no movimento “Escola sem Partido”. Em março deste ano, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) derrubou uma lei similar, de autoria da deputada Ana Carolina Campagnolo (PL), que proibia professores de tratar de temas políticos em sala. O tribunal, alinhado ao Supremo, entendeu a norma como uma violação ao pluralismo de ideias e uma forma de perseguição política.
Andrade, o advogado, levanta outro alerta: o dos dados. “As imagens gravadas são dados pessoais, e, no caso de menores, a lei é ainda mais rigorosa.” A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) impõem regras estritas sobre a privacidade e o consentimento dos responsáveis, um emaranhado jurídico que o projeto de Manzoni parece ignorar.
A votação do PL 944/2024, que estava prevista para a última semana, foi adiada. O texto, junto com um substitutivo do deputado Roosevelt (PL), entrou na pauta da Câmara Legislativa nesta terça-feira, dia 21. A proposta foi aprovada em primeiro turno com 15 votos favoráveis e 6 contrários. O texto autoriza a instalação de câmeras em salas de aula da rede pública, sob decisão de cada direção escolar, e agora segue para sanção do governador Ibaneis Rocha (MDB).

Do lado de fora e de dentro, nem mesmo a pressão dos sindicatos e entidades de direitos humanos que se mobilizaram contra a proposta foi suficiente para barrar a aprovação, que, para muitos, reabre o debate sobre o papel da escola pública e os limites entre segurança e vigilância, entre liberdade e controle. O gravador escondido no casaco do menino de oito anos pode ter sido apenas o começo.



