Alunos de medicina do Fies cogitam largar curso por causa de teto do financiamento e alta de mensalidades
Programa financia, no máximo, R$ 8,8 mil por mês, mas faculdades privadas cobram mais de R$ 10 mil. Essa diferença precisa ser paga todo mês pelos estudantes. Quando faculdades reajustam as mensalidades, o valor fica ainda mais alto. "Comecei pagando R$ 800, mas agora são R$ 2.103. Estou desesperada -- se eu largar tudo, fico sem diploma e com dívida altíssima", diz aluna. Alunos de baixa renda pensam em largar curso de medicina por causa de regras do Fies A estudante de medicina Girlene Soares, de Campina Grande (PB), é categórica ao dizer que o Fies “perdeu seu viés de inclusão social”. De um semestre para o outro, a parcela que a jovem precisa pagar diretamente à faculdade sofreu um aumento significativo: saltou de R$ 225 para R$ 946. “Minha família é da zona rural. Eu comprovei a renda de um salário mínimo (R$ 1.320), mas agora preciso pagar quase isso por mês? Como que se vive assim?”, diz. Os problemas do programa, apontados por Girlene e por outros estudantes ouvidos nesta reportagem, são resultado de ações tomadas pelo governo federal em 2016 (e mantidas até hoje) para tentar diminuir os prejuízos que o Fies traz aos cofres públicos. Veja abaixo quais são essas medidas que, como consequência, levam alunos de baixa renda a pensar em desistir do curso: ???? Teto de R$ 8.800: Especificamente em medicina, o programa financia, no máximo, R$ 8.800 por mês, que devem ser pagos pelo aluno só depois da formatura. Mas as faculdades cobram bem mais do que isso: em média, R$ 10 mil (há exemplos que chegam a R$ 15 mil). A diferença precisa ser quitada a cada mês pelo estudante — é a chamada coparticipação, que está pesando no orçamento dos jovens mais pobres. “Depois que atingimos o teto, toda vez que a faculdade reajusta a mensalidade, esse aumento recai sobre nós, alunos. Começou com 225 reais, agora já são 900 reais todo mês. Eu penso em desistir do curso, mas como que vou pagar a dívida que já assumi no Fies, se não me formar? Não vou nem ter profissão”, conta Girlene. ???? Porcentagem limitada de financiamento: De 2010 a 2015, o Fies financiava a mensalidade inteira dos alunos. Depois disso, a regra mudou: atualmente, a porcentagem de cobertura nunca chega a 100%. Tudo depende da renda familiar do estudante. Quanto menor o salário médio da família, maior a fatia da mensalidade que poderá ser paga só depois da formatura. Exemplo: na mesma faculdade, que custa R$ 10 mil por mês, um estudante com renda familiar per capita de 1,5 salário-mínimo pode conseguir cerca de 85% de financiamento (e não 100%). Com 3 salários-mínimos (o máximo permitido para o programa), seriam só 58% financiados. Essa questão afeta Gabrielle Gonçalves, aluna do 3º ano de medicina de uma faculdade privada de Paracatu (MG), cuja mensalidade é de R$ 9.558. Por causa dos critérios de renda, mesmo sem ter uma condição de vida confortável, a jovem conseguiu “apenas” 78% de financiamento – ou seja, precisa pagar R$ 2.103 todo mês. “No começo, era mais barato. Eu pagava R$ 800, com a ajuda da minha família. Mas aí a faculdade aumentou”, diz Gabrielle. "Todo ano, há um reajuste, e a porcentagem de cobertura do financiamento não aumenta. Vai ficando insustentável. Estou escolhendo quais contas pagar no fim do mês”, diz. “É um medo de nadar, nadar e morrer na praia; chegar à metade do curso e não poder continuar. É um caminho sem volta: se eu largar tudo, vou ficar sem diploma e com uma dívida altíssima. Estou desesperada.” Role as telas abaixo para ver um exemplo prático de como o Fies afeta as finanças de um jovem de baixa renda. Em seguida, continue a ler a reportagem para: saber por que essas regras existem; entender o posicionamento do Ministério da Educação (MEC); e conhecer mais histórias de alunos que se sentem prejudicados. Ao g1, o Ministério da Educação (MEC) afirma que está em curso um Grupo de Trabalho (GT) que estuda mudanças possíveis no Fies. Diz também que os recursos financeiros são limitados e que as regras acima listadas garantem a sustentabilidade financeira do programa (leia o posicionamento completo mais abaixo). Nos últimos anos, segundo dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), as prestações atrasadas dos alunos levaram a um rombo nas contas públicas. São R$ 11,3 bilhões em parcelas que já deveriam ter sido pagas. A seguir, veja depoimentos de outros alunos de medicina que se sentem prejudicados pelas regras atuais do Fies: 'Infelizmente, estou vendo meu sonho de ser médico ir para o ralo' João Victor trancou a matrícula na faculdade de medicina por causa das taxas de coparticipação do Fies Arquivo pessoal João Victor Monteiro, de 24 anos, estudava medicina em Salvador, mas pediu transferência para a sua cidade-natal, Rio de Janeiro, depois que sua avó adoeceu. O que ele não esperava é que, com a mudança para uma instituição de ensino mais cara, a coparticipação que ele passaria a pagar saltaria de R$ 2.430 para R$ 6.086 por mês — a existência do teto nas regras do Fies faz com q
Programa financia, no máximo, R$ 8,8 mil por mês, mas faculdades privadas cobram mais de R$ 10 mil. Essa diferença precisa ser paga todo mês pelos estudantes. Quando faculdades reajustam as mensalidades, o valor fica ainda mais alto. "Comecei pagando R$ 800, mas agora são R$ 2.103. Estou desesperada -- se eu largar tudo, fico sem diploma e com dívida altíssima", diz aluna. Alunos de baixa renda pensam em largar curso de medicina por causa de regras do Fies A estudante de medicina Girlene Soares, de Campina Grande (PB), é categórica ao dizer que o Fies “perdeu seu viés de inclusão social”. De um semestre para o outro, a parcela que a jovem precisa pagar diretamente à faculdade sofreu um aumento significativo: saltou de R$ 225 para R$ 946. “Minha família é da zona rural. Eu comprovei a renda de um salário mínimo (R$ 1.320), mas agora preciso pagar quase isso por mês? Como que se vive assim?”, diz. Os problemas do programa, apontados por Girlene e por outros estudantes ouvidos nesta reportagem, são resultado de ações tomadas pelo governo federal em 2016 (e mantidas até hoje) para tentar diminuir os prejuízos que o Fies traz aos cofres públicos. Veja abaixo quais são essas medidas que, como consequência, levam alunos de baixa renda a pensar em desistir do curso: ???? Teto de R$ 8.800: Especificamente em medicina, o programa financia, no máximo, R$ 8.800 por mês, que devem ser pagos pelo aluno só depois da formatura. Mas as faculdades cobram bem mais do que isso: em média, R$ 10 mil (há exemplos que chegam a R$ 15 mil). A diferença precisa ser quitada a cada mês pelo estudante — é a chamada coparticipação, que está pesando no orçamento dos jovens mais pobres. “Depois que atingimos o teto, toda vez que a faculdade reajusta a mensalidade, esse aumento recai sobre nós, alunos. Começou com 225 reais, agora já são 900 reais todo mês. Eu penso em desistir do curso, mas como que vou pagar a dívida que já assumi no Fies, se não me formar? Não vou nem ter profissão”, conta Girlene. ???? Porcentagem limitada de financiamento: De 2010 a 2015, o Fies financiava a mensalidade inteira dos alunos. Depois disso, a regra mudou: atualmente, a porcentagem de cobertura nunca chega a 100%. Tudo depende da renda familiar do estudante. Quanto menor o salário médio da família, maior a fatia da mensalidade que poderá ser paga só depois da formatura. Exemplo: na mesma faculdade, que custa R$ 10 mil por mês, um estudante com renda familiar per capita de 1,5 salário-mínimo pode conseguir cerca de 85% de financiamento (e não 100%). Com 3 salários-mínimos (o máximo permitido para o programa), seriam só 58% financiados. Essa questão afeta Gabrielle Gonçalves, aluna do 3º ano de medicina de uma faculdade privada de Paracatu (MG), cuja mensalidade é de R$ 9.558. Por causa dos critérios de renda, mesmo sem ter uma condição de vida confortável, a jovem conseguiu “apenas” 78% de financiamento – ou seja, precisa pagar R$ 2.103 todo mês. “No começo, era mais barato. Eu pagava R$ 800, com a ajuda da minha família. Mas aí a faculdade aumentou”, diz Gabrielle. "Todo ano, há um reajuste, e a porcentagem de cobertura do financiamento não aumenta. Vai ficando insustentável. Estou escolhendo quais contas pagar no fim do mês”, diz. “É um medo de nadar, nadar e morrer na praia; chegar à metade do curso e não poder continuar. É um caminho sem volta: se eu largar tudo, vou ficar sem diploma e com uma dívida altíssima. Estou desesperada.” Role as telas abaixo para ver um exemplo prático de como o Fies afeta as finanças de um jovem de baixa renda. Em seguida, continue a ler a reportagem para: saber por que essas regras existem; entender o posicionamento do Ministério da Educação (MEC); e conhecer mais histórias de alunos que se sentem prejudicados. Ao g1, o Ministério da Educação (MEC) afirma que está em curso um Grupo de Trabalho (GT) que estuda mudanças possíveis no Fies. Diz também que os recursos financeiros são limitados e que as regras acima listadas garantem a sustentabilidade financeira do programa (leia o posicionamento completo mais abaixo). Nos últimos anos, segundo dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), as prestações atrasadas dos alunos levaram a um rombo nas contas públicas. São R$ 11,3 bilhões em parcelas que já deveriam ter sido pagas. A seguir, veja depoimentos de outros alunos de medicina que se sentem prejudicados pelas regras atuais do Fies: 'Infelizmente, estou vendo meu sonho de ser médico ir para o ralo' João Victor trancou a matrícula na faculdade de medicina por causa das taxas de coparticipação do Fies Arquivo pessoal João Victor Monteiro, de 24 anos, estudava medicina em Salvador, mas pediu transferência para a sua cidade-natal, Rio de Janeiro, depois que sua avó adoeceu. O que ele não esperava é que, com a mudança para uma instituição de ensino mais cara, a coparticipação que ele passaria a pagar saltaria de R$ 2.430 para R$ 6.086 por mês — a existência do teto nas regras do Fies faz com que o financiamento não acompanhe a subida de preço. Para o jovem, ficou impossível bancar esse valor, e ele teve de trancar a matrícula. “Minha vida mudou drasticamente. Eu era uma pessoa feliz, um dos melhores alunos da sala. Moro no Complexo do Alemão [comunidade no Rio] e seria a primeira pessoa da família a se formar”, conta. “Queria continuar estudando, mas não vejo saída. Aqui no Rio, as faculdades que aceitam Fies são absurdamente caras, com coparticipações de R$ 4 mil ou R$ 5 mil. Se o governo não mexer em nada [nas regras do Fies], não vai ter jeito. Infelizmente, estou vendo meu sonho de ser médico ir para o ralo.” 'Todo ano, eu passo no Fies, mas tenho medo de me matricular' Thaís tem receio de se matricular em uma faculdade de medicina pelo Fies Arquivo pessoal Thaís Paschoalon, de 24 anos, consegue ser aprovada no Fies desde 2020, mas não chega a efetivar a matrícula, por causa dos altos valores da coparticipação. “Conversando com outros estudantes, soube que, como as mensalidades vão sendo reajustadas, os aumentos são repassados para a gente. Em São José do Rio Preto (SP), onde eu conseguiria estudar neste ano, já começaria em R$ 1.980. Não tem a menor condição”, diz. Ela continua estudando, com o objetivo de passar em uma universidade pública. O que diz o governo? O Ministério da Educação (MEC) afirma que tanto a criação do teto quanto o financiamento atrelado à renda são medidas que garantem a sustentabilidade financeira do fundo, “uma vez que os recursos são limitados e não devem ultrapassar a capacidade financeira do governo”. As duas regras também buscam, segundo a pasta, “incentivar as instituições a oferecerem mensalidades mais acessíveis e competitivas” e “evitar o endividamento excessivo dos estudantes”. Em março, o MEC instituiu um grupo de trabalho para refletir sobre mudanças estruturais do Fies. Quando a situação saiu do controle? Camila Furlan da Costa, professora do curso de administração pública e social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que, entre 2010 e 2014, houve um "boom" do Fies: com critérios mais flexíveis e juros baixos, o número de novos contratos disparou. Em 2016, estudos do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Tesouro Nacional identificaram problemas nos custos do programa. Os altos índices de inadimplência dos estudantes causavam prejuízos aos cofres públicos, já que é o governo federal que fica sem receber o dinheiro, após atrasos nos pagamentos. Nesse contexto, foram instituídas novas regras para o Fies – como, por exemplo, a criação desse teto no financiamento das mensalidades. “Esses limites estão relacionados a uma tentativa de reduzir os custos do programa e de reduzir a inadimplência”, afirma Costa. E as universidades privadas, o que dizem sobre o teto? É importante esclarecer que, quando há um atraso no pagamento das parcelas após a graduação, quem arca com a dívida é o governo — as faculdades privadas não levam esse prejuízo. Elizabeth Guedes, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), defende que o teto do financiamento seja abolido para os estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo. “Todo ano, temos reajuste das semestralidades e o mesmo problema: alunos vulneráveis do ponto de vista financeiro precisando abandonar os estudos”, afirma. A Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes) afirma que o ideal seria o “Fies 100%”. “As pessoas de baixa renda estão sendo excluídas do ensino superior”, diz.